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Crônica Fraqueza Fernanda Torres Sempre adorei ouvir as histórias que minha mãe contava do diplomata e escritor Gilberto Amado. Dono de uma vasta cultura e grande senso de humor, Gilberto representou o Brasil em inúmeros países através do Itamaraty. Uma das minhas preferidas era a da mulher que durante uma reunião fina emendou um "Eu vou ser franca com o senhor...", e Amado, antes que ela prosseguisse, respondeu: "Por favor, minha senhora, seja tudo, menos franca". Outro dia tive um jantar de trabalho que girou em torno da verdade. Ao longo da noite, meu interlocutor decretou o fim da arte, condenou toda e qualquer forma de patrocínio a atividades que não sejam capazes de se manter por si só e finalizou afirmando que, no futuro, tudo de interessante e verdadeiro emergiria das ruas e do povo, graças à revolução da internet. Pelo que entendi, eu não estava incluída nessa grande transformação da república social democrata da rede. Minha mãe sempre me alertou para o fato de que os primeiros vinte anos de profissão são moleza, mas, conforme se avança, a estrada torna-se cada vez mais estreita e esburacada. A cada cinco, dez anos, é preciso reinventar-se para perseverar, como aconselha Tchecov, e para sobreviver ao fato de que viramos o paradigma de tudo o que deve ser vencido, esquecido e renegado para que a chamada nova arte venha a existir. Talvez por ser filha dela e por ter acompanhado a sua resistência eterna, sempre desconfiei das grandes revoluções do momento, do gênio da hora e dos profetas do apocalipse. A vida evolui em círculos, em eternos retornos em que tudo é igual e diferente. Amo os dinossauros que aguentam o tranco do tempo. Hoje, Sex Pistols, The Clash e Dylan soam tão clássicos quanto Cole Porter. Assim como Cássia Eller, Renato Russo e Cazuza me são tão preciosos quanto Cartola. Para não falar de Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro e Marília Pêra, para as quais nem existe comparação à altura. Estou no avião, voltando de Madri. A cidade tem os museus mais preciosos que alguém pode sonhar visitar. O Prado reúne Bosch, Joachim Patinir, El Greco, Velásquez, Ticiano, Dürer... Tem também uma exemplar aula de sobrevivência artística, as pinturas rosinhas e solares da corte espanhola que Goya executava para pagar as contas, comparadas com sua extraordinária fase negra, essa sim dedicada aos sentimentos mais profundos, sombrios e apaixonados do pintor para com a humanidade. No Rainha Sofia é possível admirar a força da moderna cultura desse país que, apesar da brutalidade dos quase quarenta anos de regime franquista, jamais deixou de cuspir Dalis, Buñuels, Picassos e afins. Desta vez, Madri ainda me presenteou com uma retrospectiva do pintor Francis Bacon. São dois andares desconcertantes, onde se vê um motivo ser retomado dez, quinze anos mais tarde, e onde se fica pasmo com a grandeza de um artista contemporâneo tão imenso quanto os do Prado. No fim, além da surpresa de ver Ayrton Senna imortalizado em um de seus últimos trípticos, pode-se assistir a uma longa entrevista do artista para a BBC. Nela, Bacon confessa que considera o autorretrato de Rembrandt já velho, com suas manchas de tinta preta no lugar dos olhos, mais inovador do que qualquer pincelada de Pollock. Bacon cutuca o abstracionismo. Apesar da representação distorcida de seus objetos, sempre foi figurativo. O alvo primordial, consciente e inconsciente de sua pintura é o impacto emocional que emana daqueles a quem retrata. A esse sentimento Bacon dá o nome de verdade. Essa verdade impalpável é a mesma presente na fase negra de Goya, nos filmes de Buñuel, nas cores de El Greco ou em qualquer criador presente ou futuro, vindo ou não das ruas, conectado ou não com as tecnologias de ponta, sustentado ou não por mecenas interessados. O fim da arte preconizado no jantar que tive antes de deixar o Brasil me soa menos como verdade e mais como a franqueza da amiga de Gilberto Amado. O fim da arte é o fim do homem.

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